No meu último artigo para este blog, falei da N.A.I.R.U. como força que mantém "baixa" a inflação medida pelos índices de preços ao consumidor, enquanto os índices gerais de preços têm subido assustadoramente pela combinação entre a alta das commodities no mercado internacional e pela forte desvalorização cambial pela qual o Brasil passou nos últimos três anos. Talvez quem tivesse lido esse meu artigo poderia imaginar, a priori, que sou favorável a que o Banco Central aumente a taxa básica de juros, a Selic, para deter a inflação. E que eu estivesse fazendo uma espécie de apologia à volta do rentismo à economia brasileira.
Muito longe disso! O que descrevi foi o mecanismo intrínseco ao pensamento ortodoxo, segundo o qual toda e qualquer inflação é consequência direta do descontrole fiscal. E que, nesses termos, a inflação seria um fenômeno estritamente monetário, causado pelo excesso de moeda em circulação em função de tal descontrole fiscal.
O pressuposto ortodoxo é simples (para não dizer simplório): o governo incorre em excesso de gastos, sem contrapartida de receitas tributárias para fazer frente aos gastos, o governo "imprime dinheiro", o que produz o excesso de moeda em circulação. Solução: diminua-se a quantidade de moeda na economia, ora, pois! Como as práticas de política econômica desde o final dos anos 1980 abandonaram a ideia de "moeda exógena", ou seja, que o Banco Central teria controle sobre a quantidade de moeda que a economia absorve, o "mecanismo" de retirada de moeda em circulação passou a ser o aumento da taxa de juros.
O que a ortodoxia não gosta muito de dizer é que não é exatamente a redução (direta ou indireta) da quantidade de moeda em circulação que reduz a inflação, mas, sim, os efeitos que tal redução produzem na economia. Com menos moeda, há menos dinheiro disponível para gastos – seja o consumo das famílias, seja o investimento das empresas. Consequentemente, o nível de atividade tende a diminuir e essa tendência, por sua vez, potencializa o aumento do desemprego. Desemprego! Eis a variável chave na redução dos índices de preços. Para a inflação cair, o desemprego "precisa" subir.
Só que os dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC/IBGE) já mostram um cenário desolador sobre a taxa de desocupação: 14,2%. Somando-se ao desalento de 5,6%, isso equivaleria a um desemprego de quase 20%. Enquanto o governo faz uma gambiarra com os dados do CAGED para inflar as estatísticas de criação de empregos formais de mais de 400 mil vagas, a realidade é a divulgada na PNADC. Pergunta: supondo-se que o BC adota de fato o mecanismo N.A.I.R.U., para quanto o desemprego precisaria subir para manter a inflação dentro da meta? 25%? 30%?
A resposta é que, a essas alturas, o tamanho do desemprego é irrelevante para segurar a inflação. As deficiências estruturais que o Brasil tem no sistema produtivo, excessivamente centralizado em commodities, levam a desequilíbrios permanentes no balanço de pagamentos, os quais tornam inevitáveis bruscas oscilações cambiais. E tais oscilações deflagram a típica inflação de custos. Ou seja, são problemas estruturais que produzem instabilidades inerentes ao sistema monetário e, por conseguinte, severas dificuldades no controle sobre a inflação. Não o suposto excesso de gastos.
À Reuters, o Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, lavou as mãos: "fiscal descontrolado reduz a eficiência da política monetária". Isto é: vamos subir a taxa de juros, mas isso não vai fazer cócegas nos índices de inflação, que devem disparar. Portanto, aceita que dói menos.
Os ortodoxos fazem isso mesmo: enquanto, por um lado, usam o velho discurso monetarista de equilíbrio fiscal e de neutralidade da moeda, por outro lado dizem que não há o que fazer, porque o ajuste fiscal é um saco sem fundo. O discurso pela austeridade fiscal torna-se um fim em si mesmo e uma justificativa tautológica do tipo: precisamos cortar mais gastos públicos, se não funcionou, é porque não se cortou o suficiente. Uma pseudoverdade impossível de se refutar, enquanto o fosso cavado se torna cada vez mais profundo e mais difícil de sair.
Além da óbvia inversão causa-efeito. No conceito ortodoxo, é preciso ter estabilidade monetária para alcançar o desenvolvimento socioeconômico, quando a História e os fatos mostram o contrário: quando se alcança o desenvolvimento socioeconômico, a estabilidade monetária advém por consequência.
Assim, no trato dos problemas estruturais, o Banco Central "entregou a Deus", já que não tem qualquer ascendência sobre eles. E no curto prazo? Bem, pode vender reservas para evitar choques cambiais ainda mais severos. Mesmo que tenha feito isso em 2019 e 2020 e viu que não adiantou nada. Ou seja, na prática, em curto prazo, só resta subir os juros e rezar para o "deus mercado" ser piedoso, já que o que tinha que "funcionar" do mecanismo N.A.I.R.U., já "funcionou". Agora, não há mais como piorar o mercado de trabalho para segurar a inflação.
Com a estagflação voltando forte ao vocabulário econômico, resta torcer para o povo se conformar com a uberização em massa do mercado de trabalho que gere apenas uma renda básica para o ganha-pão, e com o auxílio emergencial de R$ 150 a R$ 350. A ex-nova-classe-C deve voltar rapidamente à condição "D" ou "E". E isso não é acidente de percurso. Foi um projeto fracassado para tentar manter "sólidos" os fundamentos macroeconômicos.
Fabricio Pessato é economista e professor universitário.
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